domingo, 26 de fevereiro de 2012

MILHO AOS POMBOS

Dez e quarenta e cinco da manhã, ele havia tomado um bom café, e também já estava limpo, após uma chuveirada de 25 minutos, daquelas que lava até os pensamentos. A melhor camisa, melhor cueca, sapatos novos e a meia preferida. Escova os dentes, fio dental, listerine. Documentos, cartões, chaves e cigarro.
Com 46 anos, Antônio estava pronto para o grande dia de sua vida. Ele, chega na sacada de seu apartamento de 2 quartos, sala grande, 2 banheiros, cozinha americana, lareira, piscina, sauna, salão de festas, jardim e garagem dupla. Admira a céu que tem o azul borrado de branco. A luz do sol reflete na parede do prédio do outro lado da rua e pressiona um pouco seus olhos. Do alto do quinto andar observa os transeuntes, imagina que são como pombos, chega até ensaiar na sua cabeça um arremesso de milho, que se espalha no chão e rapidamente atrai todos esfomeados. Dês da senhora com sacolas de feira e chapéu roxo ao dono da loja de informática. Na sua imaginação todos largam seus objetivos e enfiam a cara no chão em busca do micro milhos. Ele sorri, acende um cigarro.

4 minutos depois, o tubetes nicotinado chega ao fim. Arremessa-o mais longe que consegue, talvez tenha sido o melhor arremesso de bituca da história, atravessando toda a rua e caindo no gramado da Igreja.  Agora sim, Antônio está pronto. Sente que vai dar tudo certo no suicídio.  Coloca as duas mãos na mureta da sacada, segura, apoia o pé esquerdo no micro jardim embutido que se estende ao lado, sobe também com a perna direita, primeiro apoiando o joelho, enfia o sapato novo no pequeno jardim e  sente mal por já te-los sujado antes mesmo de se esborrachar no chão. O plano era ser um suicida impecável. Lentamente levanta, apoiando as costas na parede, olha lá para baixo e percebe que estar de pé naquela sacada, tornou a distância, um metro e oitenta maior, respira profundamente tentando se acostumar.  Escuta um grito que vem do terceiro andar, mas é no outro lado da rua, uma senhora gorda aponta pra Antônio e berra de sua janela, Suicida!!!



ANTÔNIO
Droga, já estão querendo me foder. Cala a boca gorda.

Logo, todos os cidadãos pombos aglomeram, como se Antônio fosse novo milho a ser jogado.  Mesmo da igreja eles saem, o próprio padre, senhoras, crianças e um cego tenta entender a situação  perguntando para um rapaz ao seu lado que olha para o alto, mas não responde por que está com os fones de ouvido, ele balança  a cabeça curtindo a música e assim parece concordar com a decisão de Antônio, que sente não ter escolhido uma trilha para o grandioso momento de sua morte.

VELHA
Não pula! Não!

ADOLESCENTE
Calma moço!!! Espera!

DONO DA BANCA
Alguém liga pra polícia, chama os bombeiros.

ANTÔNIO
Ei! Escutem! Escutem!

VELHO
Não se joga! Tenha fé em Deus meu filho!

ANTÔNIO
Calem a boca! Escutem! Escutem!!!

A multidão que está cada vez maior se cala, existe até mesmo um grupo de turistas Irlandeses que acompanha tudo com o tradução simultânea de seu guia.

ANTÔNIO
Eu vou pular! E não encham meu saco! Saiam aí de baixo, não quero machucar alguém. E também não posso correr o risco de alguém amortecer minha queda evitando minha morte, me tornando paraplégico, ok? Agora, se por favor, vocês me derem licença.

Do bolo humano, duas pessoas estão de acordo com o protagonista e se afastam dois passos pra trás. Mas logo a multidão volta a implorar pela revisão de decisão de Antônio. Antônio vê um carro escrito REPORTAGEM se aproximando.
Com muita agilidade, câmera man arma seu equipamento, está pronto para rodar, porém a repórter ainda não finalizou a maquiagem.
No meio de todos uma voz, pede silêncio, um senhor se destaca, é o padre da igreja depósito de bitucas de Antônio.

PADRE
Meu filho! Acalma seu coração. A luz divina do senhor  reflete seu brilho em todos nós, você é um merecedor desta vida,  e o Sr. tem uma missão para sua existência. 

Enquanto isso o câmera man grita “Pula!” e a repórter que já está impecável desata a falar com seriedade e  uma pitada de urgência sobre a situação do mais novo suicida que ela trás ao vivo em primeira mão para todo Brasil.

ANTÔNIO
Ei ei ei!!! Saiam da minha frente! Eu vou pular e pronto! Foda-se!

VELHA
Que horror, falar palavrão. Tampe os ouvidos Pedrinho.

ANTÔNIO
Vocês nem me conhecem!  

PADRE
Deus conhece todos seus filhos meu filho. Não importa o que você tenha feito de errado, Deus te perdoará!

ANTÔNIO
Então ele vai me perdoar se eu me jogar daqui de cima, né não?

ADOLESCENTE
Nessa ele te pegou seu padre.

PADRE
Pois é, acontece que isso ele não perdoa não meu filho. Pois ele te deu a vida, e só ele pode tirar.

ANTÔNIO
Então ele não deu na verdade. Ele emprestou, né? Por que se a vida fosse minha mesmo... Bem, aí não teria problema.

REPORTER
Corta, corta Ismael. Ei! Escuta aqui! Vai ou não esse suicídio? Eu tenho mais dois suicidas agendados pra tarde, e um possível sequestro na favela. Como é que vai ser? Quer estragar minha audiência?

ANTÔNIO
Desculpa minha querida, mas enfia essa audiência no cú! Eu não assinei nada, nenhum direito de imagem nem nada. Você não pode me filmar sem minha permissão.

A repórter solta uma risada alta, só mais baixa que a risada do câmera que quase solta a câmera se contorcendo de rir. Logo, metade da multidão também se contagia com o riso.

REPORTER
Ai ai... ah! Essa foi boa!


VELHA
Isso é incompreensível. Sai daí de cima sai. Seja homem, vai trabalhar, fazer suas coisas, cuidar da sua família. Que perda de tempo.

E a velha vira as costas e sai andando do bolo de gente de chapéu, resmungando absurdos.

ANTÔNIO
Eu perdi meu filhos pra minha mulher, por que eu a traí com uma amiga.

PADRE
Todos já pecamos meu filho. Tenho certeza de que seu arrependimento é válido. Não pule.

ANTÔNIO
Você não entendeu seu padre. Eu gostei, uma puta gostosa a amiga da minha ex mulher. Eu comi ela em cima da cama da minha filha de 9 anos.

PADRE
Ainda assim, está perdoado. Reze 40 Ave Marias e 50 Pai Nosso. Você conhece o Creio? Enfim.. reze 60 Ave Maria então.

ANTÔNIO
Que porra de Igreja é essa que perdoa tudo? Ta vendo por que eu preciso me matar? Esse esquema não pode continuar funcionando assim não. É um absurdo, tudo é perdoável. Até mesmo os políticos, ninguém ta se importando, todo mundo esquece tudo.  Eu não mereço viver. Eu votei no Collor! No CO –LLOR!

HOMEM
É... aí é foda. Pula!

ANTÔNIO
Obrigado! Alguém com sensatez.

Chega um carro escoltado por motos policiais. De dentro dele desce um político. Gordo, gravata, careca e óculos.  Ele se vira pra Antônio e com um megafone pergunta.

POLÍTICO
Boa tarde cidadão. Como vai?  Você paga seus impostos?

ANTÔNIO
Pagava! Paguei até ano passado. Mas já fazem 5 meses que não dou um real pro governo.

POLÍTICO
Pois bem... Deveria decidir se jogar mais cedo, não é?

O político vira para seu assessor e para um capitão da polícia militar e diz “Tenho que ir. Se ele não pular em 5 minutos, arranje alguém que o empurre. A não ser que ele se convença a pagar os impostos. Aí, o empurre depois.” Ele entra no carro e vai embora dando tchau pela janela para uma criança negra.

ANTÔNIO
Traí minha mulher, bati nos meus filhos, nunca paguei os empréstimos do meu pai, cuspi na cara de mendigos, um com catarro, votei no Collor, atropelei cachorro, atirei o pau no gato, comi a mulher do meu amigo, cheirei pó, dei audiência pra Big Brother, votei no Dourado, na Copa torci pra Espanha e nunca assisti Avatar.

MULHER
Aí não dá, né?

HOMEM
Fica difícil, não viu Avatar?

PADRE
Ainda assim, Jesus....

ADOLESCENTE
Cala a boca padre. Ele votou no Dourado! Pula tiozinho!!!

A multidão se une em coro, turistas, crianças, cegos, mendigos, vendedores, advogados, senhoras, senhores. Câmera man faz sinal de ok para Antônio, o padre fecha os olhos dizendo baixinho “infiel”. Todos com Iphones para o ar, flashs salpicam e em ritmo acelerado gritam.

TODOS
Pula! Pula! Pula! Pula!

ANTÔNIO
Obrigado gente! Nossa! É muita emoção! Eu não espera tanta gente me apoiando. Obrigado gente! Obrigado, eu não teria chegado até aqui, se não fosse por vocês!


E com um grande sorriso no rosto, ele pula de braços abertos, sentindo o calor do sol em seu rosto e o vento que bagunça os cabelos. Sente felicidade, naquele simples ato de alimentar pombos.





Um comentário:

  1. DOOO CARAAAALHOOOOO!!! Pra mim, é o melhor post até agora. Riqueza de detalhes, suspensão, ironia, crítica social. Amor, você é foda e cada dia melhor. Muito, muito bom mesmo.
    Amo!

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